(Shiro & Kuro)

terça-feira, 30 de novembro de 2010

# 8

«Kuro. Demorou tempo até perceber que não estavas mais por perto. Sabes como me fizeste não suportar mais o silêncio. Como me fizeste apreciar todos os ínfimos pormenores de tudo. Como criar laços com uma simples anilha...

Sinto-me sozinha. Senti-me abandonada. Estou desamparada. Sei que não estou sozinha. Mas preciso de ti. O laço é forte e supera tudo. Mas tenho saudades de te ouvir. De te ter a empurrar-me. A puxar-me. A gritar por mim. A obrigar-me a não ser preguiçosa.

(porque foste embora?...)

Ainda não voltei ao nosso pequeno refúgio desde que te vi pela última vez. Tenho de me abstrair e deixar-me levar para lá.

Sabes o que vi aos montes esta manhã quando passava pelas bancas catrefadas de ensonada?? Gomas em forma de garrafa cobertas de açúcar! Aquelas que tu adoras! Imaginei-nos logo numa grande diversão, tipo eu a distrair a senhora que as vendia e tu a encher os bolsos dos calções. E depois tu a comer umas dez e eu a comer uma... adoro-te...

Eu sei que estás bem, nem vou desejar isso. Se não fosses tu eu é que nunca teria ficado bem.

A tua Shiro. (pequeno coração desenhado)»

quinta-feira, 25 de novembro de 2010

# 7


Casa, incerta, muito temporária e cheia de correntes de ar, mas casa. Por ora, chegava.
De paredes de tinta estalada e coberta nalguns recantos com uma camada de humidade, vidros dispersos pelo chão, as folhas de livros de capas vazias e rasgadas abandonados pelos cantos, alguns cotos de velas e carecendo de mobília, mas inabitada já há suficiente tempo. E Kuro gostava do cogumelo desenhado a cores vivas numa das paredes, de autor anónimo.
Foi para aí que se dirigiu. A parede ficava perto de uma janela, por onde o sol e a lua espreitavam quando lhes apetecia.
Em cima de uma caixa de papelão tombada (artefacto precioso que encontrara intacto nem há uma semana atrás), a jovem colocou o que contivera nos seus impacientes bolsos durante todo o caminho de regresso. A seguir, sentou-se, com a caixa no meio das pernas cheias de arranhões e abriu uma lata de sumo que adquirira quando um merceeiro se encontrava distraído com algum cliente. Deu um trago na bebida, doce, e só depois concentrou a sua atenção na caixa.
Kuro avaliou a “colheita” desse dia com um olhar crítico e apreciador. «Nada mau…»
No meio das coisas, um objecto despertou-lhe a atenção. Era um anel de prata, simples mas bonito. Servia-lhe no dedo indicador e Kuro pensou em Shiro e em como gostaria de, um dia, lhe poder oferecer algo tão belo, para além das pequeninas flores que, de vez em quando, ao passar por um certo tipo de planta, espalhara nos cabelos compridos e eternamente indomesticáveis de Shiro.
Examinava um dado translúcido de oito lados quando os bocadinhos de papel entraram pela janela sem vidros, enviados pelo já frio vento de Outono.
Com paciência, juntou-os e começou a ler…

sexta-feira, 19 de novembro de 2010

# 6

Shiro acordou suavemente, tranquila. Regressara de um mundo maravilhoso repleto de doces e magia. Saltou do conforto dos seus trapos espreguiçando-se. Parou por uns segundos a sentir aquele lar vazio e silencioso mas não o suficiente para a deixar em nostalgia. «É dia de enviar a carta!». Rapidamente se pôs a andar. Caminhava por entre ruas e pessoas. Ela gostava de se embrenhar no meio da multidão que começava o seu dia comprando o almoço nas pequenas bancas. Sentia-se invisível (e sempre conseguia ganhar alguma comida, como um pãozinho quentinho e uma peça de fruta). Havia já quem a conhecesse e lhe sorrisse e também quem desviava o olhar em sinal de reprovação. Mas ela continuava a saltitar e a cantarolar pelas ruas, a cumprimentar os animais no seu caminho para a torre. Subiu. O sol estava forte a estas horas. Sorriu, era agora altura de enviar as suas folhas mágicas. Dobrou-as cuidadosamente, carinhosamente. Escreveu o nome "Kuro", soprou e os bocadinhos de papel voaram do cimo daquela torre. Ela ficou a vê-los desaparecer. Suspirou de alívio, sabia que aqueles doces pedacinhos iriam chegar ao seu destino.

Não uma vez, mas duas vezes, aquela menina de cores roxas agarradas aos fios de cabelo e calções de ganga veio falar comigo debaixo daquele candeeiro de ferro retorcido. Forças maiores não me deixavam soltar uma palavra. Medo? Ela podia não ser real e se eu falasse ela desapareceria. Mas não me impedi de me deixar levar pelos seus olhos extremamente escuros. Mostrou-me lugares esquecidos e secretos. Deu-me argolas de prata. E quando vi que ela nunca me iria fugir nem que eu nunca lhe iria fugir, dei-lhe chocolates. Falei-lhe. Dei-lhe a mão. E ficámos extensão de pele uma da outra para sempre.

Kuro. É a Kuro.

# 5

Por entre o meio da multidão, uma sombra avançava, furtiva, aliviando os bolsos das pessoas, ao passar. E suspirava, de mansinho, de vez em quando.

«Estou a ficar antiga para estas coisas…», pensava a sombra, com os bolsos dos calções de ganga cada vez mais recheados.

Uma senhora houve que quase a apanhava... Só uma pequena pena branca flutuava e descia, devagar, no local onde antes estivera a sombra carteirista, revelando, acusando, a sua presença, há nem dois segundos atrás.

«Quase…»

O coração em desvario, latejando e ensurdecendo.

Próxima dos limites da cidade, já longe da multidão, Kuro descansou. Não se atrevia a avaliar os ganhos que nesse preciso momento dormitavam nos seus inúmeros bolsos.

Ainda não. Só quando se sentisse em segurança.

Só quando chegasse a casa.

segunda-feira, 15 de novembro de 2010

# 4

Não aguentando mais os sentimentos sufocantes que lhe possuíam a mão e em seguida a escrita, Shiro, levantou-se cabisbaixa. De caderno pendendo na mão esquerda foi dar uma volta sem destino. Não tirou os olhos do chão. O olhar aguado. Mas os caminhos levaram-na ao seu lar improvisado. Construído numa pequena casa abandonada, construída por quatro mãos, de duas criaturas únicas.
Shiro levantou o olhar. "Não estás. Kuro. Eu sabia que não ias estar. mas até queria..." deixou cair o caderno no chão de pedra frio, levantando um pouco de pó. Apertou as mãos como se estivesse a agarrar aqueles sentimentos. a combatê-los. "Não consigo estar aqui Kuro." olhava em volta "Tenho de sair daqui. Não consigo ficar" dizia enquanto se dirigia para o seu monte de mantas e trapos que era uma caixa gigante de madeira. Deitou-se agarrando-se ao seu boneco branco de peluche. "estás aqui. eu sinto-te. sei que estás sempre comigo" repetia para si mesma enquanto se deixava levar pelo mundo fantástico e confortável dos sonhos.

# 3

Todos os dias, vejo anjos sentados em cima de pontes.
E, todos os dias, questiono tudo o que sei.

Havia uma menina de cabelos escuros cor de noite escura, que andava pelas ruas, de saia branca de tom sujo. E misteriosos olhos castanhos, cor de chocolate de avelãs. Encontrei-a, um dia. Ela não me falou, da primeira vez que a conheci. Nem da segunda vez que a reencontrei, debaixo daquele candeeiro de ferro retorcido.

Detesto silêncios demasiado prolongados. Só que, por qualquer motivo, não desisti. Queria conhecê-la. Ela intrigava-me. Mostrei-lhe os meus refúgios secretos e preferidos. Falava com ela, e esperava que sorrisse. E como o sorriso dela era belo, tentava fazê-la sorrir mais. Até que, um outro dia, ela falou. E ficámos extensão de pele uma da outra para sempre.

Chamava-se Shiro. Chama-se Shiro. Conheces?

sábado, 13 de novembro de 2010

# 2

"Bosques densos ocultam anjos de pedra em perpétua vigília, de asas partidas pelo pó e pelas trevas. Não saberão os humanos nunca quando os seus pés de garras compridas deixarão trilhos invisíveis nos caminhos de terra e de asfaltos por existir...
Há ecos. E manchas maculam os seus lábios e borboletas minúsculas e despreocupadas neles depositam o seu rasto de beijos efémeros.

Sereias malditas apagam imagens em gestos rápidos e destrutivos, de sombra. Os seus olhos amarelo-torrados espreitam do mais profundo dos lagos, naqueles densos bosques. Enfeitiçam. Atraem incautos para a morte. Mas a morte lenta e doce dos poetas.
Será a minha falta sentida, alguma vez?

(Perdoa-me o não-regresso a casa.

Mas que já a não suporto nem a todos os seus fantasmas.)"

Kuro fechou o livro que estivera a ler, marcando cuidadosamente a página com uma das várias penas que guardava no bolso dos seus calções de ganga. Saltou da árvore e os seus pés descalços e sujos tocaram na terra macia.

O sol ainda espreitava timidamente por detrás de nuvens desenhadas por dedos manchados de púrpura e dourado e brincava nas pequenas argolas de prata que Kuro tinha nas orelhas.

«Shiro. Saufafes…»

sexta-feira, 12 de novembro de 2010

# 1

Mais um final de dia. Shiro, a menina misteriosa de olhos cor de avelã, gostava de apreciar o final de tarde sentada no alto da torre encostada à pedra aquecida pelo sol. E ficava a ouvir o acalmar da vila e a ver o sol ir dormir.
Discreta e silenciosa, desceu a escadaria de pedra escondendo o misterioso mágico caderno de capa roxa e dirigiu-se à mesa de madeira que ficava escondida entre um muro e uma árvore gigantesca de folhagem bem verde e maçãs bem vermelhas. Era noite, acendeu o candeeiro cogumelo e de sorriso no rosto pôs-se a escrevinhar.