(Shiro & Kuro)

quinta-feira, 17 de novembro de 2011

# 21

- Miau? - tentava Shiro chamar a atenção de um gato cor de baunilha que a fitava obsessivamente. Talvez estivesse a entendê-la, quem sabe.

Gritos e trocas de palavras agressivas captaram a atenção dos ouvidos da menina.

Um bocadinho a medo, foi tentando chegar ao sítio de onde vinha a inquietação. Os seus grandes olhos cheios de preocupação encontraram, ao virar de uma esquina, dois rapazes no auge da sua adolescência a 'pegar' um com o outro, dando encontrões e alguns socos e pontapés. A discussão ficou feia sob os olhos de Shiro. Um sentimento muito triste e nervoso começou a crescer dentro dela.

Apetecia-lhe tapar os ouvidos ou ir embora deixando aquela situação para trás. Mas não conseguiu. Apareceu diante daqueles dois rostos cheios de raiva e gritou: - Parem com isso!

(Os rapazes) pararam e olharam para Shiro, que tremia perante tal exposição.

Fugiu correndo.

Na sua mente acontecia um déjàvu. Que a magoou.

Sangue, violência, raiva… Era como Shiro tinha visto Kuro a última vez.

domingo, 1 de maio de 2011

# 20

Quando, na manhã seguinte, Kuro acordou, tudo era névoa; na sua memória, espectros, feitos de sombras, pediam por favores e anéis de prata escapavam-se por entre os dedos, ressaltando na calçada.
O anel. Kuro procurou mas não estava no seu dedo.
Semicerrou os olhos. Doía-lhe a cabeça. E o corpo. Todo. Terrivelmente.
Sentia um pulsar quente no seu braço. Seguiu-o e descobriu o tubo fino e transparente por onde o soro corria. De seguida, tentou levantar-se, mas as pernas não obedeceram, apesar de Kuro se sentir com energia.
Instável e ácido, o estômago contorcia-se ao de leve. Na boca, um sabor a azedo.
“Frades de sapo”, murmuraram-lhe as paredes pálidas.
“Frades de sapo”, repetiu o metal frio, reflectindo as palavras, sabiamente.
Não estava só. O corredor estreito quase desaparecia, afogado pelas macas encostadas a ambas as paredes. A Kuro, aquele curto espaço de tempo passado no hospital assemelhou-se a uma pequena amostra do que seria o purgatório. Havia a dor em diversos graus, mais as suas vozes. E uma espera, que parecia não ter fim, em cada rosto e em cada gesto.
Só fugiu depois da enfermeira lhe retirar a pequena torneira, a que se incrustava na sua veia, com nome estranho.

quarta-feira, 16 de fevereiro de 2011

# 19

Com a pouca esperança que já tinha de rever a sua metade, Shiro despegou cuidadosamente a folha do caderno, dobrou-a o mais que pôde e em papelinhos entregou-a ao vento.

Começava a ser tão difícil preencher o vazio.

Nunca tinha estado naquela, pelo menos parecia, aldeia. As casas escondiam-se entre gigantes árvores. Em todo os pequenos espaços existia um simpático jardim. Conseguia imaginar Kuro no cimo daquelas árvores e o quão seria divertido observar obsessivamente as pessoas enquanto acompanhava Kuro na sua leitura, e ouvir as frases soltas, poéticas, com tantos significados.
Shiro tentou, mas não se conseguiu conter "emprestas-me? também posso?" depois de um bocadinho de tempo a observar fascinada as bolas de sabão no ar, aproximou-se da menina que as atirava. "claro! ali de cima é mais divertido, anda", o sol brilhava nos cabelos loiros daquela pequena. Shiro seguiu-a apressadamente escadas acima e pôs-se a fazer bolinhas de sabão para o ar.

quarta-feira, 2 de fevereiro de 2011

# 18

Depois de uns longos minutos a olhar para as árvores, para as folhas que se mexiam com o vento «elas deixam-se mexer pelo vento. Também quero.» e a observar o quotidiano dos passarinhos, puxou o seu fiel caderno. E releu:

«Estive em casa. Está estranha. Como se tivesse sentimentos (claro que tem sentimentos). Mas não consigo lá estar muito tempo. Como se agora fosse um ser maléfico e me quisesse causar aqueles sentimentos horríveis. (não são horríveis porque nunca é horrível pensar em ti, claro que não). Chateias-te se não quiser pensar em ti? Não é que não queira. Mas acho que não irias querer que eu estivesse sempre de cara baixa e de lágrimas nos olhos.

Sinto-me bem ao escrever. É como se falasse. Já não tenho ninguém para falar. De vez em quando, ainda falo contigo. Talvez me oiças.

Passei por um jardim, escondido por um gradeamento, lindo! Não fui capaz de entrar... sabes porquê, não sabes? E quase que voava atrás de um balão...

(é pecado eu lembrar de coisas, como tu dizes, da vida passada?)

Recebeste os meus papelinhos? ... (tenho a certeza de que sim!) Por vezes, pergunto-me se exististe, se sonhei, se foi real... mas eu sinto-te!

Tenho saudades tuas…muitas.

Para sempre tua, Shiro»

Suspirou. «escreves-me?... Kuro… apagaste-me de ti?... tenho medo que me vejas e não me reconheças…que assustador…»

sábado, 29 de janeiro de 2011

# 17

Ventos tentavam arrancá-la. Ela não percebia de onde, mas doía e Shiro chorava com aflição. Estava frio, muito frio e ela caiu.
Acordou em sobressalto com a batida no chão. Caíra de cabeça. «au... adormeci sem querer...». O vento estava revoltado. Não estava segura ali. Encostada a um simples muro de pedra, com desejos de diversas almas inscritos, com palavras de amor falsas e verdadeiras à espera de serem lidas com um sorriso. Ajeitava a sua saia, cada dia mais suja, quando viu algo a brilhar no chão. A luz do candeeiro solitário reflectia a sua luz em algo precioso. Shiro levantou-se um pouco atordoada ainda, era um pequeno objecto, e de tão precioso que parecia ela aproximava-se com cautela, baixou-se, foi gatinhando de encontro ao que parecia ser agora um anel. E era, um anel de prata, simples, mas cheio de magia «Kuro iria adorar». Enfiou-o no dedo indicador direito «por agora és meu».

(refeições todos os dias às mesmas horas. Ir dormir sempre à mesma hora. Ter com quem brincar todos os dias. «mas de certeza que não se preocuparam»)

Abrigou-se algures debaixo de uma caixa de madeira tombada. Parecia ter chegado a outra vila. Adormeceu depressa sufocada por pensamentos e memórias.

Acordou com uma senhora a virar a caixa. Abriu os olhos assustada como um gatinho vadio, limpou a lágrima que ainda escorria pela sua face e correu. Parou uns metros à frente, ofegante, atirando-se de joelhos para o chão «tenho...fome...». Sentou-se e pôs-se a observar à sua volta. Um mini-mercado com caixas de fruta à porta encontrava-se escondido numa rua à sua frente. Shiro passou devagarinho agarrando a quantidade de peças que mais conseguia e correu até parar num banco, num pequeno jardim. Rapidamente cravou os dentes numa maçã que devorou em escassos minutos. Nunca comera uma fruta tão deliciosa.

segunda-feira, 24 de janeiro de 2011

# 16

O plano surgira quando ouvira conversa alheia numa taberna. Os caçadores de recompensas falavam alto o suficiente devido à habilidosa acção do vinho, e Kuro não tardou a aguçar os ouvidos, enquanto sorvia discretamente o seu chocolate quente, imersa nas sombras.
Que certo pergaminho antigo estaria guardado e protegido, naquela biblioteca sinistra e raramente aberta ao público; que ficava em certa zona da cidade, mais central do que deveria, rodeada por casas de comércio e pequenos prédios de não mais de três andares; que, dizia-se, era uma casa de espectros.
A sombra das brumas seria a sua guardiã, decerto.
Mas, agora que a encontrara, Kuro não sabia que acção imediata a tomar. Deveria cumprimentá-la, deveria fingir que não a vira?

«Não!» O anel de prata escorregou do seu dedo indicador, gelado e roído da fome, nem um segundo depois de Kuro pressentir que o faria.
As brumas que lhe toldavam o caminho cerravam-se ainda mais… A sombra sorriu.
Kuro, de joelhos no chão, procurava desesperadamente o anel, esquecida por momentos da sua situação.
«Não o encontrarás», disse-lhe a sombra.
Não se ouvira a queda do anel no solo empedrado.
«Muito bem, que queres tu?»
O frio denso daquelas nuvens nocturnas persistia em agarrá-la, para que não fugisse. Levantou-se, a custo, mas somente após se certificar de ter procurado bem em toda aquela área.

«Quero que venhas comigo e que me recuperes algo.»
Nesse momento, enfraquecida pela fome e pelo frio, Kuro fechou os olhos.

sexta-feira, 7 de janeiro de 2011

# 15 (rascunho, não versão final)

A neblina caiu, rápida e sem aviso e uma película de humidade fria cobriu o mundo, transfigurando-o à sua passagem.

A luz quente dos poucos candeeiros de rua filtrava-se de maneira surreal, de selva refractada, por entre as folhas das árvores, e criava espectros dourados à sua volta, e as sombras espreitavam, indistintas, ao longe.

Kuro continuava a forçar a fechadura, cerrando os dentes com o frio. Já sentia as pontas dos dedos enregelados e mais rígidos, e doía-lhe mexê-los, tremente, mas recusava-se a desistir.
A noite há muito que recolhera as pessoas a suas casas e que trouxera os gatos e todas as outras criaturas nocturnas e vadias para as ruas.
O nevoeiro adensava-se. A porta não abria e Kuro não percebia porquê.
Tornou a girar o pequeno ferro dentro da fechadura, mas a biblioteca permanecia cerrada.
Kuro lamentou não ter nada comestível dentro dos seus bolsos enquanto a sua barriga lhe rosnava em sofrimento.
«Será melhor retroceder e voltar numa outra noite, talvez? Não. Depois de arranjar alimento, daqui a pouco.»

«Eu volto», prometeu Kuro à porta teimosa, em pensamento.
As brumas não deixavam ver muito para além de um metro de distância, obrigando a que se descobrisse o caminho, passo a passo. Kuro não havia andado mais que oito metros quando uma das brumas lhe barrou o caminho, impedindo-a de avançar.

quinta-feira, 6 de janeiro de 2011

# 14

Cor. Shiro adorava cor. Apreciava agora como as pedrinhas ganhavam várias cores quando afogadas numa pequenina poça de chuva outonal.

«será que estou à tua procura?»

Shiro sentia-se cansada. Sozinha. Cada vez mais recolhida em si própria. Tinha fome. Apetecia-lhe sentar-se num canto para sempre. Chorar até não poder mais. Memórias, não só de Kuro, tentavam puxá-la para um buraco negro. Shiro lutava, mas não se apercebia do quão forte estava a ser. Ignorava, rejeitava, desprezava o que a poderia deitar abaixo.

Olhou em volta: do lado esquerdo uma estrada, do lado direito um edifício ao longe, estranho mas de estrutura curiosa.

Decidiu-se pelo lado direito.