(Shiro & Kuro)

terça-feira, 21 de dezembro de 2010

# 13

Quase uma quinzena passara desde a carta de Shiro, e Kuro ainda não lhe escrevera de volta. 
Sempre tivera problemas com o espaço temporal, que não coincidia bem com o seu. 
Agora, ao sentir os dedos gelados do frio nocturno a alastrar pelos seus, amaldiçoava-se de ainda não o ter feito.
Contornou um passeio e parou. À sua frente, a escassos metros, estava a biblioteca. Ameaçava desmoronar a qualquer momento, poder-se-ia pensar, apesar de não ser esse o caso. Kuro, que por ela evitava passar sempre que podia, não achava o edifício de ar meio retorcido digno de confiança, como se se pressentisse algo de estranhamente errado na sua construção. Poderia ser da maneira como o edifício sombrio se torcia, parecendo estar requebrado em múltiplos pontos, acentuados pelo efeito da escada de ferro em espiral que conduzia a uma das suas muitas (e, algumas delas, secretas) portas, uns dois andares acima.  
Respirou fundo e subiu. 
A lua já a observava, curiosa. 
Retirando certos objectos finos e de ferro, um deles denteado, de um dos seus inúmeros bolsos, Kuro, com a ajuda de um isqueiro que adquirira nessa mesma tarde, pôs-se a estudar cuidadosamente a fechadura que tinha diante de si...

domingo, 12 de dezembro de 2010

# 12

Continuou, seguindo pela berma de uma estrada, perdida nos seus pensamentos insistentes, quando de repente foi interrompida por um balão de cor branca que fugia. Sem pensar, tentou procurar de onde escapara. Atravessou a estrada e, perto do muro de uma casa, sentado no chão, estava um menino vendo o balão fugitivo desaparecer no céu azul. Olhou para Shiro com olhar triste. Ela baixou-se perto dele e baixinho disse, «Não te preocupes, os anjos vão tratar bem dele! É sempre o que penso.» e um sorriso foi-lhe retribuído.

(outrora, convivera com um inocente. De sangue.)


Levantou-se. Inspirou o ar em sua volta. Cheirava a folhas secas, vento rebelde, terra húmida. Expirou com gosto. E sentiu necessidade de encontrar um refúgio para expor as letras que a inundavam agora.

# 11

Folhas secas restolhavam debaixo dos pés de Kuro enquanto o sol se espreguiçava para o interior da terra.
Em breve, cairia um crepúsculo rápido, que cobriria e acordaria as luzes nocturnas da cidade, uma por uma, como num feitiço.
Instintivamente, Kuro olhou de soslaio para o relógio que trazia no pulso direito.
«Tenho de voltar.»
As teias de aranha começariam a ganhar um brilho prateado e líquido, cristalino, de orvalho, nos seus cantos escuros, e as pessoas recolher-se-iam por completo para descansar. Depois, o vento frio seria o senhor das ruas.

Kuro ainda se encontraria na rua quando este senhor chegasse, algumas horas depois, e veria este mesmo vento atirar os bocadinhos que restariam das folhas secas pisadas para cima de tudo. «Como se atirando pequenos segredos no seu sopro.»

Enquanto pisava aquelas folhas e ouvia o som estaladiço que faziam, calcando-as propositadamente, adorando cada ínfimo tom, Kuro ainda não sabia que, esta noite, não chegaria a casa.

quarta-feira, 8 de dezembro de 2010

# 10

Pôs-se a caminhar. Andava, saltitava. Sempre longe nas suas memórias alegres. Sorria, gargalhava só de pensar em alguns momentos. Às vezes, até estendia a mão para agarrar a de Kuro.

Que ali não estava. E que de certeza diria «estou a ficar antiga...» ao ver Shiro a saltitar pelo caminho fora.

A sua vila, que as acolheu, cada vez estava mais longe.

(outrora, havia tido / tinha limites. Demais. Era sufocante.)

Ficou então cheia de curiosidade quando se deparou com um gradeamento de grande extensão abraçado por imensa folhagem. Foi espreitando e ficou cada vez com mais vontade de se atirar lá para dentro e explorar. Encontrou um gigante portão, mas não trepou como seria de esperar. Primeiro, seria trair Kuro; segundo, Kuro dá-lhe a coragem que ela precisa. Não seria a mesma coisa explorar sem a sua cúmplice. Foi espreitando com os olhos de uma criança por entre folhas, deixando os seus dedos escorregar ao longo do caminho criado pelos ferros mornos. Os seus grandes olhos cor-de-avelã brilhavam perante tanta natureza, tantas árvores, tantos recantos, tanto tapete verde para rebolar alegremente. Descobriu umas pequenas flores, espreitando cá para fora, cheirou-as carinhosamente de olhos fechados e imaginou-as irem parar aos seus cabelos por obra de outrem.

sábado, 4 de dezembro de 2010

# 9

«Tenho saudades do avô…» disse um dia Kuro a Shiro, de goela presa e voz fugidia.

(Foi quando Shiro soube que) Kuro trazia muita saudade dentro de si. Era uma saudade-fome, insaciada, uma fome urgente, ausente de luz. Infatigável e eterna. Por isso, por vezes, Kuro sonhava ser valquíria. E, nessas alturas, os dedos de Shiro tornavam-se pequeninos, muito pequeninos, mas não deixavam nunca de agarrar a mão de Kuro.

«Nós deveríamos ter asas», tornou a pensar Kuro, depois de reler a carta de Shiro pela terceira vez. O cogumelo na parede reflectia já o brilho pálido de uma lua quase cheia e o vento entrava frio pelas janelas feridas da casa abandonada.

«As de Shiro seriam brancas. As minhas, negras.

Faríamos bom uso delas e rasgaríamos todos os céus.

Saboreando cada minuto.

Deixando penas negras e brancas por onde quer que passássemos.
Inquietando. Ajudando a que se voltasse a sonhar.»

Guardou a carta em bolso secreto e aconchegou-se o melhor que pôde para dormir.
O dia seguinte passaria razoavelmente depressa e sem sobressalto. "Menos sol e mais escuridão". Sorriu.
Kuro gostava tanto de andar pelas sombras como qualquer gato triste.

terça-feira, 30 de novembro de 2010

# 8

«Kuro. Demorou tempo até perceber que não estavas mais por perto. Sabes como me fizeste não suportar mais o silêncio. Como me fizeste apreciar todos os ínfimos pormenores de tudo. Como criar laços com uma simples anilha...

Sinto-me sozinha. Senti-me abandonada. Estou desamparada. Sei que não estou sozinha. Mas preciso de ti. O laço é forte e supera tudo. Mas tenho saudades de te ouvir. De te ter a empurrar-me. A puxar-me. A gritar por mim. A obrigar-me a não ser preguiçosa.

(porque foste embora?...)

Ainda não voltei ao nosso pequeno refúgio desde que te vi pela última vez. Tenho de me abstrair e deixar-me levar para lá.

Sabes o que vi aos montes esta manhã quando passava pelas bancas catrefadas de ensonada?? Gomas em forma de garrafa cobertas de açúcar! Aquelas que tu adoras! Imaginei-nos logo numa grande diversão, tipo eu a distrair a senhora que as vendia e tu a encher os bolsos dos calções. E depois tu a comer umas dez e eu a comer uma... adoro-te...

Eu sei que estás bem, nem vou desejar isso. Se não fosses tu eu é que nunca teria ficado bem.

A tua Shiro. (pequeno coração desenhado)»

quinta-feira, 25 de novembro de 2010

# 7


Casa, incerta, muito temporária e cheia de correntes de ar, mas casa. Por ora, chegava.
De paredes de tinta estalada e coberta nalguns recantos com uma camada de humidade, vidros dispersos pelo chão, as folhas de livros de capas vazias e rasgadas abandonados pelos cantos, alguns cotos de velas e carecendo de mobília, mas inabitada já há suficiente tempo. E Kuro gostava do cogumelo desenhado a cores vivas numa das paredes, de autor anónimo.
Foi para aí que se dirigiu. A parede ficava perto de uma janela, por onde o sol e a lua espreitavam quando lhes apetecia.
Em cima de uma caixa de papelão tombada (artefacto precioso que encontrara intacto nem há uma semana atrás), a jovem colocou o que contivera nos seus impacientes bolsos durante todo o caminho de regresso. A seguir, sentou-se, com a caixa no meio das pernas cheias de arranhões e abriu uma lata de sumo que adquirira quando um merceeiro se encontrava distraído com algum cliente. Deu um trago na bebida, doce, e só depois concentrou a sua atenção na caixa.
Kuro avaliou a “colheita” desse dia com um olhar crítico e apreciador. «Nada mau…»
No meio das coisas, um objecto despertou-lhe a atenção. Era um anel de prata, simples mas bonito. Servia-lhe no dedo indicador e Kuro pensou em Shiro e em como gostaria de, um dia, lhe poder oferecer algo tão belo, para além das pequeninas flores que, de vez em quando, ao passar por um certo tipo de planta, espalhara nos cabelos compridos e eternamente indomesticáveis de Shiro.
Examinava um dado translúcido de oito lados quando os bocadinhos de papel entraram pela janela sem vidros, enviados pelo já frio vento de Outono.
Com paciência, juntou-os e começou a ler…

sexta-feira, 19 de novembro de 2010

# 6

Shiro acordou suavemente, tranquila. Regressara de um mundo maravilhoso repleto de doces e magia. Saltou do conforto dos seus trapos espreguiçando-se. Parou por uns segundos a sentir aquele lar vazio e silencioso mas não o suficiente para a deixar em nostalgia. «É dia de enviar a carta!». Rapidamente se pôs a andar. Caminhava por entre ruas e pessoas. Ela gostava de se embrenhar no meio da multidão que começava o seu dia comprando o almoço nas pequenas bancas. Sentia-se invisível (e sempre conseguia ganhar alguma comida, como um pãozinho quentinho e uma peça de fruta). Havia já quem a conhecesse e lhe sorrisse e também quem desviava o olhar em sinal de reprovação. Mas ela continuava a saltitar e a cantarolar pelas ruas, a cumprimentar os animais no seu caminho para a torre. Subiu. O sol estava forte a estas horas. Sorriu, era agora altura de enviar as suas folhas mágicas. Dobrou-as cuidadosamente, carinhosamente. Escreveu o nome "Kuro", soprou e os bocadinhos de papel voaram do cimo daquela torre. Ela ficou a vê-los desaparecer. Suspirou de alívio, sabia que aqueles doces pedacinhos iriam chegar ao seu destino.

Não uma vez, mas duas vezes, aquela menina de cores roxas agarradas aos fios de cabelo e calções de ganga veio falar comigo debaixo daquele candeeiro de ferro retorcido. Forças maiores não me deixavam soltar uma palavra. Medo? Ela podia não ser real e se eu falasse ela desapareceria. Mas não me impedi de me deixar levar pelos seus olhos extremamente escuros. Mostrou-me lugares esquecidos e secretos. Deu-me argolas de prata. E quando vi que ela nunca me iria fugir nem que eu nunca lhe iria fugir, dei-lhe chocolates. Falei-lhe. Dei-lhe a mão. E ficámos extensão de pele uma da outra para sempre.

Kuro. É a Kuro.

# 5

Por entre o meio da multidão, uma sombra avançava, furtiva, aliviando os bolsos das pessoas, ao passar. E suspirava, de mansinho, de vez em quando.

«Estou a ficar antiga para estas coisas…», pensava a sombra, com os bolsos dos calções de ganga cada vez mais recheados.

Uma senhora houve que quase a apanhava... Só uma pequena pena branca flutuava e descia, devagar, no local onde antes estivera a sombra carteirista, revelando, acusando, a sua presença, há nem dois segundos atrás.

«Quase…»

O coração em desvario, latejando e ensurdecendo.

Próxima dos limites da cidade, já longe da multidão, Kuro descansou. Não se atrevia a avaliar os ganhos que nesse preciso momento dormitavam nos seus inúmeros bolsos.

Ainda não. Só quando se sentisse em segurança.

Só quando chegasse a casa.

segunda-feira, 15 de novembro de 2010

# 4

Não aguentando mais os sentimentos sufocantes que lhe possuíam a mão e em seguida a escrita, Shiro, levantou-se cabisbaixa. De caderno pendendo na mão esquerda foi dar uma volta sem destino. Não tirou os olhos do chão. O olhar aguado. Mas os caminhos levaram-na ao seu lar improvisado. Construído numa pequena casa abandonada, construída por quatro mãos, de duas criaturas únicas.
Shiro levantou o olhar. "Não estás. Kuro. Eu sabia que não ias estar. mas até queria..." deixou cair o caderno no chão de pedra frio, levantando um pouco de pó. Apertou as mãos como se estivesse a agarrar aqueles sentimentos. a combatê-los. "Não consigo estar aqui Kuro." olhava em volta "Tenho de sair daqui. Não consigo ficar" dizia enquanto se dirigia para o seu monte de mantas e trapos que era uma caixa gigante de madeira. Deitou-se agarrando-se ao seu boneco branco de peluche. "estás aqui. eu sinto-te. sei que estás sempre comigo" repetia para si mesma enquanto se deixava levar pelo mundo fantástico e confortável dos sonhos.

# 3

Todos os dias, vejo anjos sentados em cima de pontes.
E, todos os dias, questiono tudo o que sei.

Havia uma menina de cabelos escuros cor de noite escura, que andava pelas ruas, de saia branca de tom sujo. E misteriosos olhos castanhos, cor de chocolate de avelãs. Encontrei-a, um dia. Ela não me falou, da primeira vez que a conheci. Nem da segunda vez que a reencontrei, debaixo daquele candeeiro de ferro retorcido.

Detesto silêncios demasiado prolongados. Só que, por qualquer motivo, não desisti. Queria conhecê-la. Ela intrigava-me. Mostrei-lhe os meus refúgios secretos e preferidos. Falava com ela, e esperava que sorrisse. E como o sorriso dela era belo, tentava fazê-la sorrir mais. Até que, um outro dia, ela falou. E ficámos extensão de pele uma da outra para sempre.

Chamava-se Shiro. Chama-se Shiro. Conheces?

sábado, 13 de novembro de 2010

# 2

"Bosques densos ocultam anjos de pedra em perpétua vigília, de asas partidas pelo pó e pelas trevas. Não saberão os humanos nunca quando os seus pés de garras compridas deixarão trilhos invisíveis nos caminhos de terra e de asfaltos por existir...
Há ecos. E manchas maculam os seus lábios e borboletas minúsculas e despreocupadas neles depositam o seu rasto de beijos efémeros.

Sereias malditas apagam imagens em gestos rápidos e destrutivos, de sombra. Os seus olhos amarelo-torrados espreitam do mais profundo dos lagos, naqueles densos bosques. Enfeitiçam. Atraem incautos para a morte. Mas a morte lenta e doce dos poetas.
Será a minha falta sentida, alguma vez?

(Perdoa-me o não-regresso a casa.

Mas que já a não suporto nem a todos os seus fantasmas.)"

Kuro fechou o livro que estivera a ler, marcando cuidadosamente a página com uma das várias penas que guardava no bolso dos seus calções de ganga. Saltou da árvore e os seus pés descalços e sujos tocaram na terra macia.

O sol ainda espreitava timidamente por detrás de nuvens desenhadas por dedos manchados de púrpura e dourado e brincava nas pequenas argolas de prata que Kuro tinha nas orelhas.

«Shiro. Saufafes…»